Cineasta de Guia Lopes volta à cidade para ministrar e produzir curta

Os surtos de produção que geraram a primeira face do cinema brasileiro, durante os anos 1910 e 1920, no século passado, tiveram endereço certo, de norte a sul do País, em cidades do interior. 

Os chamados ciclos regionais foram responsáveis, por exemplo, pela revelação de mestres como Humberto Mauro (1897-1983), que emergiu do Ciclo de Cataguases (MG) para uma carreira das mais significativas quanto à vocação nacional para a sétima arte.

No começo dos anos de 1930, os ciclos ainda demonstravam seu fôlego em algumas regiões, e o município de Guia Lopes da Laguna – assim como as cidades vizinhas Jardim e Nioaque – tornou-se cenário de, pelo menos, uma superprodução para os padrões da época.  

Sob o comando do produtor Líbero Luxardo e do fotógrafo Alexandre Wulfes, o longa-metragem “Alma do Brasil” foi rodado, mobilizando muita gente – inclusive centenas de figurantes –, para reconstituir a Retirada da Laguna, importante episódio da Guerra do Paraguai transcorrido entre maio e junho de 1867.

Nascido em Guia Lopes, o cineasta Dannon Lacerda começou a trabalhar na agência local do Banco do Brasil ainda na adolescência. 

Na medida em que se transferia de cidade, o menino de outrora, que gostava de dança, de teatro e não perdia uma sessão no Cine Condor, foi apurando os dotes artísticos.

De Campo Grande ao Rio de Janeiro, com uma escala de dois anos em Brasília, o administrador de empresas formou-se em Cinema e passou a dar aulas na área, participou de júris, como o do Festival do Rio de 2019, e construiu uma filmografia – seis curtas e um longa-metragem – de circulação internacional. 

“Copa 181” (2017), seu longa, foi premiado na Argentina e exibido no México, na Polônia, na Alemanha, nos EUA e em outros países.

A pandemia fez Lacerda voltar à cidade natal em 2020. É de lá que o diretor pilota, a partir de segunda-feira, mais uma oficina. Parte da equipe de seu próximo curta, “Herança”, será escolhida durante as aulas, que se estenderão até o fim do mês.

Tataraneto do próprio personagem histórico que dá nome ao município, ele toma como referência a literatura de Samuel Medeiros e aprofunda sua pesquisa, in locus, sobre o protagonismo feminino na Guerra do Paraguai, para engatar o projeto do seu segundo longa-metragem: “Em Nome da Pátria”. Com vocês, Dannon Lacerda:

Qual a proposta do curta a ser rodado em maio em Guia Lopes da Laguna?

“Herança” é um título provisório e faz parte da trilogia da terra que pretendo realizar em MS. Eu parto das minhas memórias de infância, confrontando-as com o mundo contemporâneo atravessado pelas novas tecnologias, especialmente no campo. 

A ideia inicial – digo isso porque nos meus processos de cinema sempre sou afetado diariamente pelos acontecimentos – é refletir sobre a identidade paraguaia de hoje em minha região, além de abordar questões contemporâneas, como a imposição de determinados modelos, especialmente os do agronegócio, que desconsideram a multiplicidade cultural no modo de produzir, de respeitar a natureza.  

Também abordo a questão da orientação sexual, presente em outros filmes dirigidos por mim, pois entendo que esse debate ainda precisa ser construído considerando o retorno de pautas moralistas em nossa sociedade. 

É lamentável que o Brasil ocupe o vergonhoso primeiro lugar no ranking mundial dos países que mais matam transexuais, por isso precisamos combater todas as formas de preconceitos contra o público LGBTQIAP+.

Por que escolheu produzir na cidade?

Durante os quatorze anos em que vivi no Rio e realizei os meus filmes por lá, sempre comentava sobre a minha vontade de filmar no meu estado. 

Ao retornar para Campo Grande, no início da pandemia, percebi que poderia transformar uma ameaça, a pandemia, em oportunidade, então passei a viajar para o interior em busca de inspirações. Eu vivi em Guia Lopes da Laguna até meus 20 anos, ou seja, a base da minha formação foi lá.  

E minha iniciação no mundo das artes começou quando eu era criança e passava horas no Cine Condor, nas sessões diurnas chamadas matinês, ou até mesmo nas sessões para o público adulto, pois conseguia driblar a censura. No lixo do cinema, recolhia pedaços de películas para montar meus filmes com fita adesiva junto com meu primo.  

Essa parte da minha história eu conto no curta “Cine Centímetro”, de 2013, que tem Malvino Salvador como protagonista. Na minha cidade, fui professor de danças folclóricas e aprendi a gostar não apenas de cinema, mas também de teatro, de pintura, de ópera. 

Foi um período muito especial, e por isso decidi fazer esse novo curta nessa cidade que sempre me inspira.

Me fala um pouco da estética e dos recursos de produção do longa e do curta.

Um crítico disse que meus filmes – são seis curtas e um longa – possuem uma poiesis muito peculiar, que parece beber da estética asiática. 

De fato, uso muito os silêncios para compor as atmosferas dos meus trabalhos, os pequenos gestos, detalhes às vezes imperceptíveis aos nossos olhos viciados, distraídos.  

“Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz”, escreveu Manoel de Barros, e eu tento fazer isso. A influência dos modelos de narrativas norte-americanas, nas últimas décadas, tem influenciado muito a nossa forma de conceber cinema, e isso me incomoda muito… 

Tudo é apressado, agitado demais, com efeitos demais, arquétipos e modelos padronizados, que sufocam a originalidade.  

Felizmente, existe um grupo de cineastas que surgiram a partir do cinema nordestino contemporâneo que tem ajudado a compor e contar histórias pessoais e humanas, que refletem o desejo de mostrar um Brasil profundo.

Meu curta “Herança”, que, como disse antes, faz parte da trilogia da terra, tem um viés mais social, confrontando ideias para buscar essa confluência da ética com a estética.

 Assim, mais uma vez, busco o equilíbrio das composições imagéticas (uma câmera mais contemplativa) com as infinitas possibilidades sonoras em uma região repleta de influências musicais paraguaias.  

Como diz a música “Sonhos Guaranis”, de Paulinho Simões, estamos falando de uma região onde o Brasil foi Paraguai e precisamos valorizar essas potências, ter orgulho dessas heranças e de toda beleza que ela nos propicia em âmbito social e/ou cultural, principalmente.

Já no longa “Em Nome da Pátria”, o viés é histórico, porém sob a perspectiva feminina de Senhorinha Barbosa Lopes, minha tataravó, aprisionada por duas vezes pelos paraguaios, sendo que a segunda prisão durou cinco anos durante a Guerra da Tríplice Aliança. 

Acho legal essa ideia de contar os impactos das guerras – quase sempre deflagradas por homens, brancos, héteros – a partir de uma visão das mulheres, e para isso estou cercando-me de uma equipe de grandes pensadoras que me ajudarão nesse intento.  

Trata-se de um trabalho ainda em desenvolvimento, que demandará muitas pesquisas e tratamentos do roteiro antes de se transformar em filme. 

Apesar disso, já tenho o elenco principal escalado: Andreia Horta vai interpretar Senhorinha e Daniel Oliveira interpretará Guia Lopes, porque, além de excelentes atores, eles também são de Minas Gerais, assim como os meus tataravós.

E as oficinas? Qual o conceito e o que pretende com elas?

Eu sempre trabalhei como educador. Como professor de danças, durante uma década, como educador da Universidade Corporativa Banco do Brasil por mais de 15 anos e como professor de Produção Audiovisual na pós-graduação de Gestão Cultural nas Faculdades Hélio Alonso (Facha).  

Essa experiência, principalmente após meu contato com a obra de Paulo Freire, associada ao trabalho de diretor (que também tem a função de educador), motivou-me a desenvolver um curso on-line de Atuação Audiovisual para a Casa de Artes Laranjeiras, que se desdobrou em uma oficina que ministrei exclusivamente para atores de MS no início deste ano.  

Agora, decidi compartilhar os meus conhecimentos como produtor com pessoas que desejam conhecer melhor esse universo. Esses treinamentos são gratuitos, pois acredito que essa é uma forma de contribuir para o audiovisual do Estado, principalmente para grupos minorizados.  

É importante registrar que a área audiovisual gera emprego e renda não apenas para produtores, atores e diretores, mas para toda a cadeia produtiva, como figurinistas, costureiras, camareiras, etc. Infelizmente, a área de cinema foi muito impactada nos últimos três anos com a ausência de políticas públicas continuadas para fomento e apoio.

 É triste ver esse desmonte, mas precisamos resistir, porque sabemos a importância do cinema para o desenvolvimento das sociedades, promovendo reflexões e gerando uma cadeia produtiva importante para a economia.

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