Sala escura. De repente, a telona ilumina-se. O projetor joga a luz em preto e branco e sonhos. Nas poltronas, o público aguardava ansioso. Mais ansioso ainda, de forma anônima e escondido entre as fileiras da sala, uma pessoa esperava e anotava as reações. Uma por uma. Só relaxava mesmo quando ouvia o som preferido… o sorriso. Mais do que isso: gargalhadas, e que faziam o público pensar.
O multiartista paulista Amácio Mazzaropi (1912 – 1981), que nasceu há exatos 110 anos e dedicou a vida à arte, fazia de tudo: atuava, dirigia, escrevia, produzia, cantava… e marcou o nome na história da cultura brasileira ao projetar o homem caipira do interior de São Paulo (que poderia ser de qualquer canto do país), de uma forma perspicaz, com comédia e crítica, usando e abusando de aparentes contrastes. Ingenuidade e sagacidade, ou ternura e esperteza, simples e complexo…
Foram 32 filmes (feitos em 28 anos, de 1952 e 1980), com uma média impressionante de mais de um longa-metragem por ano. Antes do cinema, trabalhou no circo e no teatro. Como cineasta, trabalhou com a Companhia Vera Cruz e depois fundou a própria empresa Produções Amácio Mazzaropi (PAM Filmes).
Assista a trecho de O Puritano na Rua Augusta, exibido pela TV Brasil
A proposta dele era fazer as pessoas rirem. Era pra isso que ele fazia cinema. Ele ia nos próprios filmes dele sem que ninguém soubesse para saber quais elementos despertavam o riso na plateia. Aí ele repetia em outros filmes”, afirma a historiadora Soleni Fressato, que é professora da Universidade Federal da Bahia. Ela escreveu o livro “Caipira sim, trouxa não”, sobre a obra de Mazzaropi, a partir da sua tese de doutorado.
Assista a trecho de Jeca Tatu (Museu Mazzaropi)
O “Jeca” que ninguém consegue passar para trás atrai a atenção de pesquisadores da arte brasileira, e também continua encantando o público. A TV Brasil, da EBC, mantém em sua grade semanal os filmes do cineasta, no Cine Mazzaropi, atualmente com exibições às quartas e sábados (confira aqui).
Para a pesquisadora Soleni Fressato, um dos segredos da atenção e do sucesso permanentes tem relação com a valorização da vida simples e dos sentimentos humanos, pelo caminho da comédia. Além do riso para descontrair, a pesquisadora entende que ele guardava espaço especial para questionamentos. “Entre as décadas de 1950 e 1970, de avanço da industrialização no Brasil, ele valoriza o meio rural. O caipira que ele representa sai desse meio rural e vai pra cidade e ele não se transforma na cidade. Ele continua com seus valores caipiras e isso que dá força pra ele enfrentar a vida urbana”.
Valor do campo
Ao analisar os filmes do artista, a pesquisadora identifica que há a valorização de um camponês que transita entre a subordinação e a transgressão. “O sorriso no cinema de Mazzaropi vai até contra os padrões estabelecidos porque ele resistia às imposições”. Deboches por um riso que surge ambivalente (espalhafatoso e que mexe com as ideias do público).
Inclusive, a pesquisadora acrescenta que outro segredo é que o indivíduo caipira é um símbolo conhecido na arte nacional, também na literatura, nas artes plásticas, na música desde o século 19. “Mazzaropi colocava a modernidade em xeque. O personagem não é nada ingênuo. Na verdade, é sempre o mais esperto e utiliza essa esperteza para escapar, como uma forma de resistência para escapar da subordinação. Ele revela nessa ingenuidade dele e até infantilidade porque ele compreende muito bem os jogos de poder”.
Entre as obras que a pesquisadora aprofundou o olhar, estão Jeca Tatu (1959) e Tristeza do Jeca (1961), em que as narrativas abordam, por exemplo, como o camponês resistia às práticas coronelistas e às adversidades no campo. Do período da Chanchada, a professora cita obras como Chico Fumaça e Chofer de Praça (ambos de 1958), em que o caipira sai do meio rural e vai pra cidade.
“São filmes muito bacanas pra você pensar como o caipira utiliza os próprios códigos dele para não ser ludibriado no meio urbano. É um momento muito especial para ele porque era o ator, o diretor, o roteirista, o produtor. Então ele era livre para fazer o que ele queria na verdade”.
Assista a trecho de Tristeza do Jeca (Museu Mazzaropi)
Assista a trecho de Chico Fumaça (Museu Mazzaropi)
A pesquisadora contextualiza que houve preconceito com a obra dele, mas a partir da sua morte (em 1981, e que deixou o filme Maria Tomba Homem sem terminar), os trabalhos passaram a ser revisitados com outros olhares..
Período de ouro
Ele fez sucesso de bilheteria, que não é pouco, mesmo para os padrões de hoje. Nos anos 1970, por exemplo, com cinco filmes, ele teve um público de mais de 13 milhões de pessoas. “O que torna o feito ainda mais impressionante é que ele, quando lançava um filme, tinha no máximo dois rolos: o original e a cópia. A película era muito cara. Ele não tinha a possibilidade de fazer cópia de distribuição que hoje tem uma grande produtora no Brasil. E mesmo assim ele conseguia atingir um público muito grande”, detalha Soleni Fressato.
Nos anos 1950, quando Mazzaropi começou a produzir cinema, há um maior investimento nessa arte, com equipamentos mais sofisticados, contratação de atores, uma experiência de indústria. A televisão chegava ao Brasil também, e a rádio continuava sendo o meio mais popular. “Ele chamava cantores que faziam sucesso no rádio para cantar nos filmes dele. Assim as pessoas conheciam visualmente aqueles artistas”, explica a historiadora.